Beijos e balas

                                                                                                                         ©Lecy Pereira

No Jukebox do bar do quarteirão mais próximo tocava “Hotel California” do Eagles. Em seguida veio “Sweet Child O’Mine” do Guns N’Roses.
Em meu quarto, a pergunta que me veio à cabeça foi se a escolha das músicas era randômica ou se alguém escolhia pacientemente o set list. Num típico bairro de subúrbio, longe de qualquer badalação, essas músicas provocam um estado de melancolia miserável.
Ao olhar pela janela, tudo que eu podia visualizar era uma rua escura, ainda com a lâmpada do poste acesa. Naturalmente, essas lâmpadas foram feitas para não clarearem as coisas. E para não perderem o costume vindo lá dos anos 1980, havia um carro parado no meio da rua e um casal encostado nele trocando um beijo frenético.
Há aqueles jovens que decidem ficar no bairro nos fins de semana e o que mais se vê são aquelas garotas de saia curta ( para não dizer minissaia) e salto alto acompanhando rapazes com indefectíveis bonés que são parte de suas personalidades. Isso lhe parece familiar?
É o documentário da realidade desenrolando diante dos nossos olhos. Tudo tão continuado  e com cenas bastante previsíveis. E bem se sabe, as perifirias nasceram para nunca ter cinemas, teatros, ginásios ou qualquer tipo de entretenimento noturno.
Decerto, Paris é uma cidade onde há escritores saindo pelo ladrão. É difícil encontrar alguém que empolgue uma editora após Susane Sontag, Marguerite Duras, Marguerite Yourcenair, Racine, Sartre. As mídias móveis e imóveis têm alterado o “ofício” de redigir.
Por que, raios, Paris, entrou nessa narrativa?
Retornemos ao suburbano do abandono, ao trecho geográfico que sequer chama a atenção no Google Street View, ao lugar comum relegado a notas policiais de subjornais.
O casal continuava trocando um beijo incendiário, enquanto o carro os suportava sem poder fazer barulho.
Não sei quem disse que Deus não gostou do rumo que a Literatura tomou. Sinceramente, eu nunca imaginei que Ele bancasse o editor aborrecido e que houvesse gente tão bem informada sobre as opiniões Dele acerca da produção literária alhures.
Logo ali, um sujeito pilotando uma moto parou sorrateiramente e disparou quinze tiros na cabeça de um adolescente que soltava uma pipa, certa hora do dia, talvez por não ter algo mais formativo a fazer.
Começo a refletir sobre os livros escritos por Ferrez e por MV Bill. Seriam realidades distintas? De alguma forma Capão Redondo e Savassi se amalgamam. Ipanema e Vila Marimbondo são coirmãs. Apenas, mundos paralelos justapostos e compostos por cérebros que precisam de comer-cagar-mijar-amar e fazer outras coisas tidas por civilizadas ao longo do dia. Onde o susto nisso?
Assim, as línguas do casal continuavam inquietas. Cheias de prazer e buscando um gozo instantâneo no meio da rua.
Inesperadamente, o Jukebox dispara “Ai, se eu te pego” do Michel Teló. A vida continua entre um e outro fato.

Dentro do ônibus urbano I

                                                                                                                                 ©Lecy Pereira

Lulu entra no ônibus, que cumpre seu trajeto cotidiano por uma grande avenida da cidade (se é urbano, só poderia ser da cidade). Por sorte ela encontra um lugar vazio – algo muito raro, considerando a quantidade de ônibus que a empresa coloca em circulação.
 Uns 5 minutos depois entra a Cacilda, que fica meio sem graça ao ver a Lulu, mas fazer o quê, não é?
-Oi, Cacilda, tudo bem?
-Oooi, Lulu, bom te ver. Menina, você conseguiu aquele curso para sua filha?
-Não.
-Pois é, eu consegui e estou fazendo. Inclusive eu preciso descer a uns 3 pontos para uma aula. Estou voltando do trabalho. Você nem imagina como estou cansada. Auxiliar de enfermagem, você sabe como é que é,né?
-Pois é, não é vida fácil.
-Aqui, eu posso te passar o endereço pra sua menina ir. Tem caneta aí?
-Não. Tenho celular.
-Boa, me passa o número e eu te ligo. Acho que ela vai gostar.
-Pode ser uma boa, mesmo.
-Então, tá chegando meu ponto. Vou descer, viu? A gente se fala depois.
-Tá bom, Cacilda.
 Nisso o ônibus começa a lotar. Um homem de uns 30 anos, bom porte físico usando boné e carregando uma sacola vermelha entra no ônibus e  fica na parte da frente, próximo ao motorista.
 Rapidamente, Lulu saca o celular e faz uma ligação.
– Oi, Regininha? Menina, você não vai acreditar…Sabe aquela pir…pessoa que você adora? Pois é, entrou nesse ônibus e já desceu. Disse que estava trabalhando. Você crê? Gente, ela disse que estava indo pro curso de Informática. E o seu marido, o Dudu, entrou nesse ônibus uns três pontos depois e ficou lá na frente. Ele está até com uma sacola de loja. Parece que fez compras.
 Nisso, o Mauro, que já estava dentro do ônibus, se aproxima de Lulu, a reconhece e a cumprimenta.
-Espera um pouquinho que eu volto a te ligar, Cacilda – diz Lulu e fecha o aparelho telefônico. – Oi, Mauro! Há quanto tempo! Você continua com a banda?
-Sim. A gente até gravou um CD e vamos fazer um show em breve.Vou até te convidar.
-Nossa! Que tuuudo! Vocês vão bombar!! Me chama, mesmo.
-Aqui, eu vou descer. Te ligo para o show. Muito bom te ver.
-Tá certo. Me ligue. Sucesso pra vocês!
Lulu abre o celular e liga novamente para a Regininha.
-Então, Regininha, você tem certeza? Eu não posso acreditar. Os dois? Aaah, é muita cara de pau, geeente! Como é que pode, um trem desses? Mas, aqui, eles não estavam juntos. Ela entrou e desceu antes. Ele entrou depois. Daqui eu estou vendo ele. Está usando uma camisa verde.
-Mimimimimimimimimi…
-Você acha que é tudo teatro? Eles estão se encontrando todos os dias? Misericórdia. Haja dinheiro pro motel. Desculpa, amiga. Aqui, eu preciso passar aí depois pra gente tomar um café juntas.Amiga, não tem cabimento um trem desses. O Dudu, aquele cara tímido do bairro… pegando a Cacilda com o sol quente…quem te viu, quem te vê… nossa… e você… deve estar arrasada…Regininha… ainda bem que ele não me viu sentada aqui. O pior é que a cara não queima de jeito nenhum. Aqui, eu vou desligar. Você sabe, não é? Esses ônibus costumam ter ouvidos. A gente se encontra depois para eu te contar tudo em detalhes, viu? Amiga, tudo de bom. Mas é ordinário, hein…sangue de Jesus…